Menos “Cofres” privativos e mais Orçamento

A justiça, enquanto pilar fundamental de qualquer sociedade democrática, deveria ser acessível a todos os cidadãos, independentemente da sua condição socioeconómica, no entanto, ainda existem barreiras insuperáveis para grande parte da população, apesar das reformas ao longo de dezenas de anos, que nos prometeram melhorar a sua eficiência e acessibilidade.

As taxas de justiça, que devem ser pagas para iniciar qualquer processo judicial, acabam por ser uma forma de financiar o sistema judicial e tornam-se um obstáculo para muitas pessoas. Além disso, os custos adicionais, como honorários de advogados e despesas com perícias, tornam ainda mais difícil o acesso à justiça para a população com baixos rendimentos.

Acrescem ainda os encargos registrais bastante elevados, com a emissão de certidões relativas a pessoas, empresas, território e veículos, com prazos artificiais de validade para encher os cofres do ministério e suportar os encargos do sistema judiciário.

Esta multiplicidade de cobrança de atos processuais intermédios, acaba por impedir uma verdadeira transformação digital no sentido de uma justiça mais célere e capaz de trocar dados em tempo real, sem necessidade de intervenção humana em muitas das fases dos processos.

Apesar de em 2007 se ter acabado com os “Cofres do Ministério da Justiça”, o sistema judicial português parece continuar a ter uma sofreguidão financeira, onde as taxas de justiça e as certidões são utilizadas para financiar a construção e a manutenção dos tribunais, comprar novos equipamentos e pagar suplementos a funcionários.

Luís Vidigal

Embora a modernização da infraestrutura judicial seja necessária, o financiamento dessas melhorias, através da cobrança interna de taxas elevadas, levanta questões éticas e procedimentos sinuosos, que contrariam as boas práticas de gestão orçamental e de equidade social.

Na média dos países da OCDE constata-se que 59% dos cidadãos enfrentam problemas legais, mas apenas 32% procuraram ajuda, invocando barreiras que incluem a falta de conhecimento, custos financeiros e desinteresse. Portugal está entre os piores países avaliados no acesso à justiça, pois 44% dos portugueses enfrentaram problemas legais, mas apenas 14% acabaram por procurar ajuda. Acresce que, de acordo com um recente estudo do ISCTE, é muito preocupante que 74% dos portugueses tenham uma perceção negativa do funcionamento da Justiça.

A simplificação e a automatização dos procedimentos judiciais, para reduzir os custos e os tempos associados aos processos, é uma prioridade absoluta, nomeadamente através da introdução de mecanismos mais interativos e desmaterializados de gestão documental, para tornar a tomada de decisão mais rápida, barata, rigorosa e transparente.

Esta transformação passa por formulários dinâmicos, capazes de incluir certidões em tempo real, a partir dos vários curadores de dados seguros e fiáveis, incorporando regras e algoritmos decisórios em conformidade com as disposições legais e sem possibilidade de manipulação de datas e prazos nos processos.

Do ponto de vista orçamental, a justiça não pode ser um Estado à parte dentro do Estado, com as suas próprias regras de receitas e despesas, em que as pessoas com menos rendimentos acabam sempre por ser as principais vítimas desta espiral de recursos necessários para suportar a atual máquina judicial cada vez mais pesada, fechada e burocrática.

Opinião de Luís Vidigal – Representante da sociedade civil na Rede Nacional de Administração Aberta, consultor internacional de e-Government, ativista cívico e ex-dirigente de topo em áreas tecnológicas e de modernização administrativa

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