Será que o cante nos faz automaticamente pensar num grupo coral com homens de idades mais generosas num palco cantando as suas tristezas e melancolias?

Essa ideia parece estar a mudar, e talvez esteja a ser reinventada pelos mais novos que trazem estas raízes nos seus corações e não querem que sejam esquecidas. A transformação faz parte da evolução e novos projetos estão a surgir para salvaguardar o cante alentejano e toda a sua tradição e cultura.

Texto – por Mariana Gaspar [email protected]

Alentejo – por Mariana Gaspar

A sul da serra de Portel, vimos a grande planície de Beja, na margem esquerda já estamos na Cuba, seguimos para Ferreira e continuamos para Castro Verde, avançamos para sul e à esquerda chegamos a Serpa. É aqui onde encontramos os grandes sítios do cante alentejano. Está a mudar a maneira como vimos o cante, já não é aliado apenas às tabernas manchadas de vinho com paredes amarelas de tanto tabaco que foi ali fumado.

“O foco que a UNESCO deu palco a que esta tradição esteja a ser salvaguardada e que esteja a ser ouvida e preservada” – refere Paulo Lima, o antropólogo responsável pela candidatura.

Esta candidatura surgiu com o propósito de valorizar os cantadores e as cantadoras que o cante é uma manifestação agregadora que combate a exclusão social. O projeto foi promovido precisamente pelo município de Serpa e a comunidade de referência foi também este concelho, embora a candidatura abrangesse todo o território do cante.

Paulo Lima explica que “no fundo o génio criador humano criou ali uma coisa excecional, o património imaterial é algo que não é excecional, é uma lista que tem a função de mostrar a diversidade e a criatividade do génio humano, todos somos diferentes, todos somos iguais e todos somos imaginativos.”

A candidatura deu dignidade aos cantadores, houve um grande reconhecimento enquanto amantes da prática musical.

Elevou-os e aumentou-lhes a autoestima. Ou seja, não é porque o cante está inscrito que é superior a qualquer outra manifestação cultural que não está inscrita. O que se pretendeu dar a conhecer através da candidatura foi a diversidade de manifestações.

Luís Trigacheiro

No património imaterial o solista, Luís Trigacheiro aproveitou esta “onda” em que novos projetos que estão a ser desenvolvidos com os seus vinte e três anos, está radiante e ao mesmo tempo a denotar alguma humildade pelo facto de ter ganho um concurso musical de televisão.

Eram duas da tarde e já bebia uma cerveja no restaurante onde costuma trautear umas melodias com os seus conterrâneos. Estava em casa. Depois de tanta azáfama que tinha tido na correria de Lisboa, também não foi na sua cidade natal, Beja, que o deixaram sossegar, por ter elevado o cante foi aclamado com muitas palavras de carinho e apreço. “Primeiro tenho de descobrir aquilo que eu sou e aquilo que eu quero. E espero que isso traga coisas muito boas, independentemente de tudo o que vou ser.

Vou fazer as coisas da maneira que gosto e da maneira que me identifico.” Ri-se, Luís um pouco envergonhado, mas consciente dos perigos que existem na visibilidade que agora tem.

Foi no ambiente do Alentejo profundo que Luís se começou a apaixonar pelo cante, talvez por influência da sua avó e também pelos seus amigos que foram formando juntos vários projetos musicais.

“A malta falava que o cante estava perdido, mas a verdade é que isso veio-se a provar que não.” Confessa Luís com um brilhozinho nos olhos. “Foi uma conquista para o cante”, anteriormente a este acontecimento, este modo de cantar estava aliado a um excesso de álcool, nas tabernas, em que depois dos trabalhos rurais era a uma forma de descomprimir.

Hoje a visão é outra, as mentalidades mudaram e as gerações juntam-se pela tradição que lhes corre nas veias, que há muito se deve ao que a candidatura veio a representar.

Os Monda

Gostar deste tipo de música, para pessoas mais novas, era ser ridicularizado e até um pouco foleiro, “não era apropriado para a nossa idade”. Testemunha Jorge Roque, o vocalista do projeto Monda.

Mas grupos como os Monda, os Bafos de Baco ou até os Bubedanas de Luís Trigacheiro surgiram antes do cante ser considerado património imaterial da humanidade, “foi um bom passo, no sentido em que conseguimos com que outros miúdos conseguiram formar os seus próprios grupos corais, nas aldeias, vilas e entrar noutros grupos que já existiam também.” Diz Luís com orgulho.

O que se presenciou nas faixas etárias mais novas foi um redescobrir de algo que faz parte das raízes alentejanas, não o deixando desvanecer.

Jorge Roque, cantor alentejano, de alma e coração, sempre sentiu a presença do cante na sua casa por influência dos seus pais. Dedica a sua vida à música e vem de uma geração em que se ouvia muito na adolescência Nirvana, Jorge Palma, Guns N’ Roses e até mesmo Rio Grande.

Mas “o cante no fundo é a minha matriz identitária, eu vivi e cresci nisso.”

O seu percurso musical foi até agora muito caraterizado pela sua versatilidade, mas o que ficou sempre na sua idiossincrasia foi as raízes alentejanas! O projeto que integra agora são os Monda, onde geram uma fusão, com as mesmas letras, as mesmas melodias, mas produzem arranjos diferentes e propõem uma nova forma de olhar para este tipo musical. “há uma opinião própria sobre os mesmos temas que é feita de maneira diferente, e os Monda tentam mostrar um Alentejo contemporâneo e dinâmico. Sendo que a música não pode ser nunca uma coisa estanque, seja ela do Alentejo, do mundo, há sempre uma dinâmica e uma evolução natural das coisas.”

Nestes novos projetos conseguimos sempre encontrar a raiz do cante alentejano, o que existe agora de diferente é uma desconstrução do que tinha sido feito. “É uma questão de adaptação” assume Jorge Roque. “Eu tenho sentido isso a partir do grupo monda. Mesmo quando criámos os Monda não existia essa fusão Pop, eletrónica com a música tradicional alentejana.” Para um ouvinte, ou para um curioso acerca destas transformações musicais que existem na cultura portuguesa sabemos que um projeto é bom quando identificamos um fundo de verdade e quando existe uma intenção clara nestes trabalhos, e que respeitam as matrizes e a tradições. Os Monda foram pioneiros na medida em que conseguiram realizar esta fusão, mas também porque conseguiram elevar este estilo musical. Trouxeram outras personalidades que à primeira vista não teriam nada que ver com o cante tradicional alentejano, como Rui Veloso, Katia Guerreiro, Maro e conseguiram promovê-lo fazendo-o chegar a outro patamar e levá-lo para outras fronteiras.

Estamos então perante uma internacionalização do cante alentejano?

O grande problema de ser internacionalizado passa muito pela logística, é quase impossível mobilizar regularmente um grupo coral de trinta pessoas. Em contraponto os embaixadores que o Alentejo tem tido como de António Zambujo, Buba Espinho, Luís Trigacheiro, os Monda, Vitorino e até mesmo os Adiafa… como é possível esquecer “As meninas da Ribeira do Sado”. Todos eles conseguiram ligar holofotes para o cante alentejano.

Esta transformação do que é o cante, hoje, apresentam projetos mais móveis para realizar este tipo de espetáculos, “não sendo o cante puro e duro tradicional, mas isso também faz parte da nossa geração” explica Buba Espinho. Funde outros géneros “e a tempo e tempo devagarinho se vai ao longe, o cante alentejano tem o seu caminho na música nacional e internacional, com o tempo vai ser reconhecido porque tem qualidade e identidade”. Diz Buba Espinho com apenas 25 anos e já com uma bagagem cheia de música, traz um legado de várias gerações da música no seu percurso e que a sua preocupação é preservar a música portuguesa e as suas tradições.

“O cante alentejano é algo que nos identifica é bastante original e não existe em mais lado nenhum. As pessoas estão recetivas em ouvir o cante alentejano e a perceber a identidade do cante, portanto vai ser um processo natural, eu não tenho dúvidas nem pressa de que o cante seja internacionalizado, mas é algo que irá acontecer.” acrescenta Buba Espinho

O que falta no cante é uma promoção, e é o que falta no Alentejo. Pelas suas tradições musicais existentes no sul. Em termos de comunicação não existe. Tem que existir uma estrutura municipal que queira participar. Está nas mãos dos jovens e dos menos jovens, dos velhos e dos menos velhos que ainda cantam. “Vê-se muito na televisão grupos mais reduzidos a usarem o cante. Isto nunca aconteceria se não tivesse havido a candidatura do cante.”, contempla Paulo Lima.

Sem a candidatura, estas realidades não aconteceriam.

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