Só é possível descentralizar poder centralizando informação

A propósito das parcerias público-privadas, da multiplicação de agências e empresas públicas e da desconcentração de serviços públicos, muitas vezes travestida de descentralização e regionalização, cabe-nos alertar para as oportunidades e riscos de um possível modelo futuro de empresarialização da administração pública na atual sociedade da informação.

A Nova Gestão Pública (New Public Management – NPM), também conhecida como managerialismo, surgiu como uma moda neoliberal nas décadas de 80 e 90 do século XX, no Reino Unido com Thatcher e nos EUA com Reagan, e ainda está muito presente no nosso país, como resposta política à ineficácia e rigidez do anterior modelo burocrático inspirado em Max Weber, preconcebendo a gestão privada e os seus instrumentos como princípios de gestão indiscutíveis e definitivos para a gestão pública e fazendo a apologia do modelo de mercado e do espírito empreendedor por parte do gestor público.

O Estado passaria a ser uma soma de partes independentes e autogeridas, constituindo-se num amontoado de empresas “de faz de conta”, em vez de um todo coerente e integrado ao serviço dos cidadãos e agentes económicos, acabando por se constituir num bloqueio para a fluidez dos processos interdepartamentais tão necessários a uma estratégia bem sucedida e madura de automatização de serviços públicos (e-Government) e dos respetivos mecanismos de transparência.

O paradigma do NPM partia de um pressuposto erróneo, ao considerar a gestão empresarial como inerentemente superior à gestão pública, passando os cidadãos a ser meros consumidores. A reforma de base gestionária conduziu a alguns excessos, uma vez que a procura de serviços mais eficazes e eficientes levou a que se preterissem alguns dos mais importantes valores do serviço público.

A abordagem de mercado, ao privilegiar a concorrência interna entre organismos e ao alimentar as suas vaidades, esquece muitas vezes a colaboração mútua e relega para segundo plano a inovação e a criação de valor, que deveriam contribuir para a economia, aceleração e fluidez dos dados e processos conducentes à melhoria da prestação de serviços públicos interdepartamentais, que deverão estar focados acima de tudo na resolução dos eventos de vida dos cidadãos e das empresas, independentemente dos organismos, das áreas ministeriais e dos níveis de governo, que contribuem para a satisfação dessas necessidades da sociedade e do exercício da soberania do Estado.

Ao longo dos últimos trinta anos assistimos a um balanceamento entre os valores do serviço público (equidade, cidadania, accountability, transparência e interesse público) e os valores de desempenho (eficiência, eficácia, qualidade, objetivos e avaliação dos organismos e indivíduos), como se se tratasse de valores mutuamente exclusivos.

Luís Vidigal

As tecnologias podem dar um excelente contributo para a coexistência destes valores, como os canais de interação múltiplos e universais, business intelligence, robótica e inteligência artificial, internet das coisas (IoT), sistemas de reporte e alerta automáticos, workflows suportados em blockchain, tecnologias móveis, entre outras, apoiando todo o ciclo da gestão, seja ela pública ou privada. A questão está nas competências profissionais, na determinação e na confiança nos valores do serviço público, por parte de políticos, gestores e funcionários. Acima de tudo, o que se pretende é a criação de um ambiente de confiança, potenciador da capacidade do Estado em impor decisões vinculantes em nome do interesse público.

Ao longo de muitos anos, testemunhámos que a maioria dos membros do governo e dos dirigentes de organismos da administração pública se acomodam e preferem funcionar em ambientes fechados, de acordo com o modelo hierárquico vertical, para se reforçarem a sí próprios, em concorrência com os seus pares, para se perpetuarem ao longo do tempo, muitas vezes fechados em “silos” de informação independentes, controlando tempos e canais de resposta, como forma de proteger clientelas específicas, as quais se julgam muitas vezes com o direito a atendimento e serviços privilegiados.

Cada ministério, organismo ou nível de soberania tende a refugiar-se nas suas pirâmides fechadas e rodeadas de símbolos de poder, de forma a proteger e perpetuar as suas estruturas, as suas competências, os seus orçamentos, os seus recursos humanos e as suas próprias clientelas, reproduzindo um modelo de funcionamento mais orientado à perpetuação do poder do que à prestação de serviços à sociedade. Com isso, muitas vezes, os organismos que têm competências e poder legal para a coordenação e regulação transversal, acabam quase sempre por perder autoridade e credibilidade junto do ambiente operacional onde atuam e são rejeitados na sua atuação, mais de comando impositivo do que de liderança e motivação organizacional e processual.

Ao longo dos nossos 50 anos de experiência vivida em torno da modernisação e reforma administrativa, adquirimos a convicção que o modelo de funcionamento com organizações isoladas assim como o modelo de comando a partir das pirâmides descendentes ou do centro para a periferia estão obsoletos, pois as redes horizontais, e até mesmo multidirecionais e neuronais, estão cada vez mais a substituir as hierarquias. Os processos que estão na base da prestação de serviços públicos precisam transformar-se em redes de trabalho interinstitucionais ou cadeias de valor, para poderem fornecer produtos ou serviços de interesse para os cidadãos ou agentes económicos, com o mínimo de tempo e custo e a máxima qualidade, transparência e escrutínio.

É por isso que temos muito medo das parcerias público-privadas, da multiplicação de agências e empresas públicas e da desconcentração travestida de descentralização e regionalização, pois, enquanto não tivermos sistemas de informação para monitorar os atos de governo e garantir a accountability dos responsáveis, vão-se multiplicar centros de poder redundantes, mais caros e pouco transparentes. Pois paradoxalmente, utilizando as tecnologias da sociedade da informação, podemos descentralizar o poder, ao mesmo tempo que podemos centralizar a informação de gestão para o devido escrutínio e controle.

Opinião de Luís Vidigal – Representante da sociedade civil na Rede Nacional de Administração Aberta, consultor internacional de e-Government, ativista cívico e ex-dirigente de topo em áreas tecnológicas e de modernização administrativa

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