Mais do que um documento escorreito e bem estruturado, desta vez sem PowerPoint, para a “simplificação administrativa e transição digital”, constatamos com agrado que foram as intervenções do Primeiro Ministro e da Ministra da Juventude e da Modernização, que transmitiram o verdadeiro segredo da estratégia deste governo para esta área.
O governo, ao colocar o foco no serviço aos cidadãos e às empresas, através da colaboração e da partilha de dados entre os ministérios, transmitiu uma nova atitude para o sucesso da modernização e digitalização do Estado, pois não basta trazer mais dinheiro e tecnologias para os problemas, se não soubermos mudar os paradigmas da gestão da informação e das atitudes das pessoas que interferem nos vários processos interdepartamentais.
O programa “Mais Simplificação Menos Burocracia”, aparentemente não traz muita coisa de novo. Parece que nos foram apresentados apenas alguns lugares comuns e algumas promessas óbvias, assim como houve o mérito e a humildade de acelerar ou alargar algumas medidas de governos anteriores. A continuação da marca SIMPLEX é um bom exemplo de apropriação institucional positiva, sem destruir o seu valor simbólico.
Fazer o óbvio e não reinventar a roda, são dois dos maiores méritos deste programa, pois desde há muitos anos que afirmamos que “modernizar a administração pública é fazer o óbvio”, que “inovar é criar valor ouvindo os outros”, assim como “colaborar não é perder poder”. Estas são algumas das atitudes que habitualmente os políticos não estão dispostos a assumir no curto prazo das suas legislaturas, acabando quase sempre por destruir valor ignorando muito do que foi bem feito anteriormente.

Mas, em nosso entender, o que é que este programa verdadeiramente traz de novo?
Parece que finalmente se quebraram as séries das “medidas a metro”, de cariz político-mediático, que se iniciaram nos anos 90 com as “Mil medidas de modernização administrativa” do tempo de Cavaco Silva, em que o Diário da República era pintado de verde todos os anos no Dia Nacional da Desburocratização, passando pelas centenas de medidas anunciadas já neste século, nos vários ciclos dos programas SIMPLEX, com vacas a voar, mas com muito pouca ou nenhuma articulação entre si.
A modernização administrativa foi quase sempre um palco para anunciar periodicamente as vaidades de cada ministério, região ou autarquia, com muitas promessas e pouco escrutínio sobre as suas concretizações e sobretudo sem grande avaliação do seu impacto efetivo. Mas no final das contas, o protagonismo ficava todo centralizado numa única entidade ou membro do governo e não era partilhado nem apropriado por todos os intervenientes.
Ora o que este programa parece trazer de novo é a ênfase na necessidade de articulação entre os vários setores da Administração Pública, colocando o foco na resolução dos vários eventos de vida do cidadão e da empresa, limitando a 15 medidas, que na sua maioria requerem colaboração e partilha de dados entre serviços.
Desde 1989, quando criámos o Infocid, a que chamávamos “janela única aberta ao cidadão”, passando já neste século pelo “Portal do Cidadão” e até aos nossos dias com o “e-Portugal”, muitas foram as tentativas de criar portais únicos centrados nas necessidades do cidadão e não nos organismos, mas caiu-se na tentação de centralizar demais num único organismo todo o mérito e protagonismo na realização destes portais.
Desde há mais de 25 anos que falamos em “federalismo organizacional” e recomendamos, dentro e fora do país, que na coordenação da modernização administrativa “é preciso dar brilho a todas as estrelas para salvar a galáxia”, evitando centralizar num só organismo central todo o protagonismo das iniciativas.
Nunca como hoje se centralizou tanto poder e competências num só organismo, como é o caso da Agência para a Modernização Administrativa, mas nem por isso esta agência tem tido mais autoridade e credibilidade para atuar junto dos organismos do Estado onde é suposto intervir. Também aqui são precisas novas atitudes, para saber ouvir e partilhar o protagonismo com os outros, para se construir esta verdadeira mudança transversal com o foco no cidadão.
Por isso vemos com muito agrado o restabelecimento de fóruns de debate e partilha com todos os ministérios, como acontecia nos anos 80 e 90 com os Encontros de Responsáveis de Sistemas e Tecnologias de Informação, onde se quebravam muitas barreiras e se construíam muitas pontes colaborativas.
Parece que só agora se percebeu a importância de federar dados e devolver aos organismos o protagonismo da sua gestão, não deixando de centralizar e simplificar a interface com o utilizador, recorrendo ao mesmo design system, à versão em inglês, à marca Gov.PT e a uma área reservada das interações do cidadão com o Estado.
Aumentar mais 32% o número de Lojas do Cidadão, criadas na era Guterres (de 72 para 95) e aumentar mais 28% o número dos Espaços do Cidadão, abertos na era Passos Coelho (de 893 para 1143), expandindo-os a mais consulados, aos estabelecimentos do ensino superior e a 27 hospitais, é um bom exemplo da aposta na continuidade do modelo de atendimento inclusivo e de proximidade.
Saudamos com agrado a criação dos “Números de Identificação para Cidadãos Estrangeiros de Uma Só Vez”, que é uma iniciativa incluída na recente Tomada de Posição da Associação para a Promoção e Desenvolvimento da Sociedade da Informação, para melhorar o controle e a integração dos imigrantes.
Por último, queremos sublinhar que este governo, nas palavras do próprio Primeiro Ministro, não pretende continuar a criar uma “burocracia digital”, na mesma linha do “Manifesto contra a burocracia electrónica” que lançámos no ano 2000 em Ottawa no Canadá, com o propósito de evitar informatizar o Estado, sem previamente fazer as necessárias arquiteturas e reengenharias de processos. Por isso preferimos o propósito de “transformação digital”, em vez de uma simples “transição digital”, onde parece que fica tudo na mesma.
Opinião de Luís Vidigal – Representante da sociedade civil na Rede Nacional de Administração Aberta, consultor internacional de e-Government, ativista cívico e ex-dirigente de topo em áreas tecnológicas e de modernização administrativa