Há um vazio no sistema de controle e integração de imigrantes não documentados
Dizia-se nos anos 60 que os portugueses que emigravam para França “a salto” só tinham “passaporte de coelho”. É o que acontece hoje com muitas pessoas à volta do mundo, que enfrentam dificuldades por não possuírem documentos de identificação oficial, o que gera desafios significativos tanto para essas pessoas quanto para as sociedades onde estão ou por onde passam nas várias correntes migratórias.
De acordo com o Banco Mundial, mais de mil milhões de pessoas em todo o mundo não possuem qualquer tipo de identificação legal. A maioria dessas pessoas está concentrada em países de baixo rendimento, especialmente na África subsaariana e no sul da Ásia. Por isso, um Passaporte e um Visto parece ser um “privilégio” para os imigrantes que chegam até nós vindos de algumas partes do mundo.
Em Angola, quando trabalhei em 2011 no plano estratégico de informatização dos impostos e em 2016 na conceção do Cadastro Social Único das pessoas mais pobres e com necessidades especiais, constatei, com alguma perplexidade, que apenas um terço da população tinha documentos de identificação, o que significava não possuírem quaisquer direitos de cidadania, nem acesso aos elevadores sociais básicos, mas apenas uma simples existência estatística num qualquer recenseamento.
As guerras, a instabilidade civil e os desastres naturais podem destruir os registos existentes e dificultar o acesso das pessoas deslocadas para obterem novas identificações. Em algumas comunidades, especialmente entre as populações rurais e grupos nómadas, pode haver falta de consciencialização sobre a importância dos documentos de identificação ou a desconfiança em relação às autoridades governamentais.
Muitas vezes os processos administrativos são complicados, com requisitos rigorosos de documentação e burocracias ineficientes, que podem impedir as pessoas de obter documentos de identificação. Estas dificuldades acabam quase sempre por estimular o negócio da falsificação de documentos, com a cumplicidade de autoridades, que eu próprio testemunhei em algumas geografias e que acabam quase sempre por ser introduzidos irregularmente nos sistemas formais de registo e controle que chegam até nós.
Sem um documento de identificação, as pessoas frequentemente não podem aceder aos serviços essenciais como saúde, educação e programas de assistência social, nem tão pouco abrir contas bancárias, conseguir emprego, abrir uma empresa, ter acesso à justiça e terem capacidade de exercer direitos civis, como votar. Por isso, as pessoas sem documentos de identificação ficam mais vulneráveis à exploração, ao tráfico humano e aos abusos de poder, por terem dificuldades para comprovar a sua identidade e a sua idade.
Organizações como o Banco Mundial, a ACNUR e a UNICEF trabalham com os governos para apoiar iniciativas de registo de Identidades, aproveitando tecnologias como os telemóveis, a biometria e o blockchain, que podem agilizar o processo de registo e garantir uma identificação segura e verificável.

Destaco aqui o caso de sucesso da identificação biométrica Aadhaar na Índia em 2009, que registou mais de 1,3 mil milhões de pessoas e atribuiu um número de identificação único de 12 dígitos, que facilita o acesso a vários serviços. Para isso foram usados kits móveis de recolha biométrica em áreas rurais e remotas para alcançar populações, que não têm acesso a centros de registo fixos, permitindo simplificar e acelerar deste modo o processo de inscrição, assim como possibilitou a redução do custo e das barreiras para obtenção de um documento de identificação em larga escala.
Ainda existem muitas preocupações para garantir a segurança e a interoperabilidade dos dados biométricos e pessoais para proteger a privacidade das pessoas, que sejam capazes de ser inclusivos e superar as barreiras enfrentadas por grupos marginalizados, como mulheres, crianças e minorias étnicas, de modo a que os sistemas sejam sustentáveis e adaptáveis às futuras mudanças tecnológicas e demográficas.
O mundo da mobilidade humana aumentou muito nos últimos anos e a imigração tornou-se um tema fraturante nas disputas políticas e na sociedade, mas, apesar dos alarmes populistas, a população de Portugal tem apenas cerca de 11% de imigrantes, muito abaixo da média europeia, dos quais 40% trabalha na agricultura e pescas, 30% trabalha na restauração e hotelaria, cujo setor garante 15% do PIB, na construção civil 28% da mão de obra também são imigrantes, ao mesmo tempo que o PRR sublinha o aumento de investimentos neste setor para os próximos anos.
Com o desenvolvimento da robótica e da inteligência artificial, alguns dos empregos mais repetitivos poderão ser substituídos por máquinas e desintermediação humana, mas a maior parte das tarefas atualmente desempenhadas pelos imigrantes não serão facilmente substituíveis, pois tratam-se de tarefas quotidianas não repetitivas, de difícil automação e com baixa atratividade para os cidadãos nacionais, muitas vezes só ao alcance dos “irrelevantes” de baixa qualificação. Por outro lado, o foco na atração dos imigrantes mais qualificados pode reduzir a empregabilidade dos nossos jovens e encorajar ainda mais a fuga para o estrangeiro da nossa “geração mais qualificada de sempre”.
A regularização das cerca de 400 mil manifestações de interesse que estão pendentes na AIMA e que justificaram as políticas do atual governo, não tem em consideração estes “irrelevantes” não documentados que, enquanto houver trabalho em alguns setores, são chamados e seduzidos de forma massiva nas redes sociais, pelas várias rotas de migrantes clandestinos apoiados por máfias poderosas e muito convenientes para alguns empresários esclavagistas e sem escrúpulos. Não se consegue gerir, planear nem controlar o que não se conhece, é por isso que a Associação para a Promoção e Desenvolvimento da Sociedade da Informação (APDSI) propõe a inserção dos imigrantes o mais cedo possível no Ciclo de Vida do Cartão do Cidadão.
O repatriamento de pessoas de países terceiros não é tão fácil como se julga, pois é um procedimento dispendioso e pouco eficaz nos estados de direito europeus, em que apenas foram repatriados em 2022 para um país terceiro 17 % de todas as decisões de regresso emitidas durante esse ano. Muitos destes cidadãos pendentes de repatriamento acabam por fugir ao controle e vaguear debaixo das pontes e em guetos de marginalidade, à espera de uma oportunidade para ganhar dinheiro e conseguir sobreviver.
Opinião de Luís Vidigal – Representante da sociedade civil na Rede Nacional de Administração Aberta, consultor internacional de e-Government, ativista cívico e ex-dirigente de topo em áreas tecnológicas e de modernização administrativa