Os “apagões” e a gestão dos sistemas informáticos do setor público
Quando muitas pessoas gostam de falar em “Estado Mínimo” e ao mesmo tempo assistimos ao “apagão” de alguns portais como aconteceu recentemente com a colocação dos professores e o agendamento do atendimento dos imigrantes, a governação dos sistemas e tecnologias da informação (SI/TI) na Administração Pública passou a estar de novo na agenda política e mediática.
Em 2003 o XV Governo de Durão Barroso, anunciou o levantamento e caracterização, no âmbito da administração central, das funções exercidas pelo Estado, de forma a obter os elementos necessários à concretização da reforma da Administração Pública. No entanto, este estudo infelizmente nunca apareceu à luz do dia, salvo algumas interpretações mais sensacionalistas e demagógicas, tendo-se limitado praticamente a uma constatação da realidade sem dar pistas concretas em relação ao futuro.
Por isso, precisamos com urgência avaliar as áreas de competência requeridas para prosseguir as missões nucleares do Estado, deixando de intervir em áreas de baixa soberania, as quais podem ser melhor asseguradas pelo mercado, em livre e sã concorrência. Os sistemas e tecnologias da informação aparentemente não fazem parte das funções nucleares do Estado, mas com o aumento progressivo da digitalização dos serviços públicos, a sua gestão merece uma atenção cada vez mais cuidada.
À partida, existem dois grandes grupos de competências e de actividades que não devemos misturar em termos orgânicos e funcionais: As áreas de coordenação (mais perto da estratégia política) e as áreas de prestação de serviços (mais perto das tecnologias). Tratam-se de intervenções em planos que convém manter segregados e que se traduzem em relacionamentos e subordinações totalmente diferentes em relação ao ambiente operacional onde atuam: relações de parceria e relações de cliente-fornecedor, particularmente difíceis de conciliar num sistema fortemente hierarquizado como é a Administração Pública.
Quando nos dispomos a refletir sobre as missões do Estado e sobre a correspondente salvaguarda da sua soberania, temos de introduzir um eixo de internalização ou externalização, consoante o risco e o valor estratégico que estão associados a cada atividade e a cada competência requerida. Se isto é verdade para qualquer área funcional do Estado, no caso dos SI/TI esta reflexão reveste-se da máxima importância e atualidade.
Mesmo nos programas de reforma mais recentes e focados na centralização e racionalização dos serviços partilhados, ainda não ficaram claras as missões e as competências no âmbito dos SI/TI, que deveremos proteger de forma soberana e aquelas que se devem externalizar de forma mais eficiente e económica, mas se algum dia tivermos de escolher ou nos faltarem recursos para cobrir todas elas internamente, sem dúvida que protegeríamos as funções mais estratégicas e soberanas como o Planeamento Estratégico, a Arquitetura e a Gestão dos SI/TI, não hesitando em descartar para subcontratação externa o Desenvolvimento e a Exploração de sistemas e aplicações.

É aqui que entra o paradoxo do outsourcing, ao exigir que se garantam internamente níveis mínimos de competência tecnológica, para que se possam cumprir, com credibilidade e profissionalismo, relações independentes e sustentáveis com parceiros, clientes e acima de tudo, com o mercado das tecnologias. Infelizmente ainda assistimos demasiadas vezes à contratação externa de diagnósticos e planos estratégicos de SI/TI, cujas soluções acabam quase sempre por ser implementadas pelos mesmos fornecedores, de forma promíscua e contra todas as regras de segregação de competências.
Todos os relatórios sobre a situação dos SI/TI na Administração Pública apontam para uma grande dispersão e redundância de estruturas, contudo, é preciso ir mais além e saber quais delas estão efetivamente preparadas para planear, arquitetar e gerir os SI/TI e ao mesmo tempo quais estão qualificadas para ir ao mercado subcontratar competências e produtos sem perca de soberania por parte do Estado.
Não existem bons fornecedores sem bons clientes, mas infelizmente a maioria dos organismos de SI/TI do Estado ainda se limita a desenvolver competências produtivas em vez de competências estratégicas, arquitetónicas e gestionárias, pois raros são aqueles que se prepararam para uma relação adequada e profissional com o mercado. Por isso, multiplicam-se cada vez mais as adjudicações diretas e a captura dos serviços públicos pelo mercado privado.
A administração directa do Estado (direções gerais), de acordo com a Lei no 4/2004, integra os únicos órgãos capazes de exercer legalmente “poderes de soberania, autoridade e representação política do Estado”. São também os únicos órgãos capazes de garantir “o estudo e conceção, coordenação, apoio e controlo ou fiscalização de outros serviços administrativos”. No entanto, estes organismos passaram a ser os “patinhos feios”, pois cada vez é menos possível exercer a sua soberania quando o dinheiro e a competência técnica estão a fugir para a administração indirecta do Estado (agências, institutos e fundos autónomos), tentando-se deste modo garantir “flexibilidade de gestão” e salários mais competitivos, através da fuga do direito público para o direito privado.
Na prática, as competências de coordenação de SI/TI estão “de pernas para o ar” e progressivamente a ser assumidas pela administração indirecta do Estado ou mesmo por empresas privadas, contrariando todos os dispositivos legais. Em contrapartida, ainda se assiste à manutenção de organismos com o estatuto de direções gerais, que se limitam a exercer competências técnico-operacionais de baixa soberania, as quais seriam melhor exercidas pela administração indirecta em regime de serviços partilhados ou mesmo pelo mercado privado.
Se não se levar mais a sério a governação dos sistemas e tecnologias da informação do Estado, receamos que no futuro vamos ter mais “apagões” e rupturas na prestação de serviços públicos eletrónicos.
Opinião de Luís Vidigal – Representante da sociedade civil na Rede Nacional de Administração Aberta, consultor internacional de e-Government, ativista cívico e ex-dirigente de topo em áreas tecnológicas e de modernização administrativa