A “Agenda Anticorrupção”, anunciada no último dia 20 de junho pelo XXIV Governo Constitucional, aborda a necessidade urgente de combater a corrupção, que mina a confiança pública e desvia recursos essenciais, prejudicando os serviços críticos do Estado e a economia real do país.

O documento destaca quatro pilares principais para a luta anticorrupção: punição efetiva, celeridade processual, proteção do setor público e prevenção da corrupção.

Entre as medidas destacam-se a transparência nas relações entre o Estado e o setor privado, a regulamentação da atividade de lobby, o fortalecimento de mecanismos de denúncia e proteção aos denunciantes, bem como o uso de tecnologias digitais para agilizar os processos e melhorar a recolha de provas. O foco deste artigo centra-se, acima de tudo, no papel das tecnologias para a aceleração da Agenda Anticorrupção no nosso país.

A “Agenda Anticorrupção” apresenta uma visão abrangente e ambiciosa, abordando vários aspetos críticos da corrupção, no entanto, a implementação dessas medidas pode enfrentar desafios significativos, como a resistência institucional e a necessidade de recursos substanciais para a adoção de tecnologias, que poderão estar fora do atual enquadramento orçamental do PRR.

Além disso, a eficácia das novas regulamentações dependerá da capacidade do sistema judicial de aplicá-las consistentemente e da cultura de integridade entre os funcionários públicos e a sociedade em geral.

Decorridos 30 anos da criação da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), os organismos públicos têm-se limitado a uma transparência passiva em relação a pedidos de acesso à informação, por parte dos jornalistas e demais cidadãos. É por isso que se tem de apostar mais na transparência ativa com recurso às tecnologias da informação.

A ênfase na transparência e na participação pública é positiva, mas deve ser acompanhada por mecanismos robustos de fiscalização e responsabilização, que fazem apelo à transparência ativa dos sistemas e dos poderes públicos, ao mesmo tempo que devem despertar a cidadania ativa no seio da sociedade civil.

A corrupção é um desafio persistente que compromete a integridade das instituições, mina a confiança da sociedade, impede o desenvolvimento sustentável e tem sido uma arma de arremesso e de insultos político partidários e na ascensão dos populismos, sem se apresentarem medidas e processos credíveis para o seu combate efetivo.

É por isso que acreditamos nas tecnologias como uma poderosa aliada no combate a esse fenómeno, que nos proporciona ferramentas inovadoras que fortalecem a transparência, promovem a responsabilidade e possibilitam uma abordagem mais eficaz contra as práticas corruptas.

As tecnologias desempenham um papel crucial na promoção da transparência nos processos governamentais, surgindo por todo o mundo cada vez mais aplicações e plataformas online dedicadas à denúncia anónima, que se têm mostrado eficazes no combate à corrupção. Essas ferramentas proporcionam um canal seguro para os cidadãos relatarem atividades suspeitas sem o medo de represálias. Além disso, as tecnologias permitem a implementação de sistemas de proteção para os denunciantes, garantindo a sua segurança e privacidade, incentivando uma participação mais ativa na exposição de práticas corruptas.

A inteligência artificial e as ferramentas de e-Discovery, cada vez mais utilizadas na investigação criminal, revolucionam a capacidade de análise de grandes conjuntos de dados, capazes de identificar padrões e anomalias que poderão apontar indícios de corrupção e de outros crimes. Algoritmos avançados podem analisar transações financeiras, contratos e outros registos, facilitando a deteção precoce de comportamentos suspeitos. Isso não apenas agiliza os processos de investigação, mas também contribui para a prevenção de atividades corruptas.

A tecnologia blockchain, com os seus registos imutáveis e descentralizados, oferece uma camada adicional de segurança e transparência, nomeadamente na gestão de contratos públicos, reduzindo o risco de manipulação e corrupção, através da execução automática e transparente de acordos.

As TIC permitem a criação de sistemas eletrónicos de concursos públicos, que reduzem significativamente a margem para irregularidades. Processos automatizados e monitoramento em tempo real tornam as licitações mais transparentes, competitivas e menos suscetíveis a práticas corruptas, mas não basta serem transparentes para as partes interessadas, pois também devem ser escrutinadas pela sociedade civil, com interfaces claras e de fácil acesso.

Apesar dos benefícios, é importante abordar os desafios éticos associados ao uso das tecnologias no combate à corrupção. A proteção da privacidade, a garantia de que os algoritmos sejam imparciais e o cuidado na implementação de tecnologias são aspectos cruciais para assegurar a equidade e a justiça.

Sem dúvida a tecnologia emerge como uma ferramenta indispensável na luta contra a corrupção, proporcionando meios inovadores para prevenir, detetar e punir práticas corruptas. Ao adotar essas soluções, os governos e a sociedade civil fortalecem a integridade das suas instituições, promovendo uma cultura de responsabilidade e construindo um futuro, onde a corrupção seja confrontada de maneira eficaz e transparente.

De acordo com o Report on Industry Trends for Law Enforcement de 2019, pelo menos 85% dos casos de investigação criminal envolvem provas digitais, que revelam um aumento crescente das fontes de evidências digitais, que aparecem nas investigações, que incluem mensagens de telemóvel, correio eletrónico, repositórios de documentos em discos de computador ou no submundo da internet profunda (Deep e Dark Web), entre outras fontes de prova. Por isso, são muitas as ferramentas TIC de investigação criminal e judiciária, que nos ajudam cada vez mais no diagnóstico forense de redes e de bancos de dados, a que as autoridades portuguesas de investigação criminal ainda têm pouco acesso.

A crescente integração de tecnologias na administração pública tem desencadeado transformações significativas e uma das áreas mais impactadas é a transparência ativa, que passa pela divulgação proativa de informações por parte dos órgãos públicos, permitindo que os cidadãos tenham acesso fácil a dados relevantes sobre as ações e decisões dos vários níveis do governo e da administração pública. Nesse contexto, as TIC desempenham um papel crucial na promoção da accountability, fortalecendo a democracia e ampliando a participação da cidadania ativa.

A implementação de portais de transparência online é uma das formas mais evidentes em que as tecnologias têm contribuído para a transparência ativa. Essas plataformas oferecem um espaço centralizado para a divulgação de informações orçamentais, contratos públicos, gastos governamentais e outros dados relevantes. A acessibilidade a essas informações, de forma rigorosa, rápida e descomplicada, deveria permitir que os cidadãos monitorassem as ações dos diversos órgãos de poder, compreendessem o uso dos recursos públicos e identificassem possíveis irregularidades, mas isso ainda não acontece em Portugal.

Além disso, a inteligência artificial (IA) tem-se mostrado uma ferramenta valiosa na análise de grandes conjuntos de dados públicos. Algoritmos de IA podem identificar padrões, tendências e possíveis anomalias nos dados, facilitando a deteção de práticas questionáveis ou comportamentos inconsistentes e criminosos. Essa capacidade de análise automatizada agiliza os processos de fiscalização e auditoria interna e externa, bem como o escrutínio público por parte dos cidadãos e dos média, permitindo uma resposta mais rápida a eventuais problemas.

As redes sociais e outras plataformas digitais também desempenham um papel crucial na transparência ativa, ao proporcionar um canal direto de comunicação entre os poderes públicos e os cidadãos. A divulgação de informações em tempo real, as atualizações sobre políticas públicas e a promoção de debates online contribuem para a consciencialização e envolvimento da sociedade civil. Os cidadãos, por sua vez, têm a oportunidade de expressar as suas opiniões, questionar decisões e colaborar ativamente no processo de governança do país e do espaço geopolítico onde se inserem.

Entretanto, é importante ressaltar que a eficácia da transparência ativa não depende apenas da implementação de tecnologias, mas também da qualidade e da clareza dos dados e das informações disponibilizadas. Os poderes públicos precisam adotar práticas de comunicação transparentes, garantindo que os dados sejam compreensíveis e relevantes para o público. Além disso, é essencial promover a educação digital, para garantir que os cidadãos não sejam excluídos e possam aproveitar ao máximo as ferramentas disponíveis.

É crucial que essas inovações sejam implementadas desde o início da sua conceção (by design), de maneira ética e escrutinável, por forma a garantir que a transparência ativa seja um instrumento efetivo na construção de uma administração pública mais aberta e responsável.

A abertura e a transparência ativa do Estado ainda constitui um objetivo que está longe de ser alcançado, como forma de enfrentar um futuro hiperdigital caótico na administração pública e no escrutínio dos poderes públicos, pois Portugal não tem sabido aproveitar as oportunidades da utilização das tecnologias para a transparência ativa, dinâmica e em tempo real, especialmente no combate à corrupção.

Preocupada com este atraso, a Associação para a Promoção e Desenvolvimento da Sociedade da Informação (APDSI), iniciou já um debate com vista à elaboração de uma Tomada de Posição sobre o papel das tecnologias no combate à corrupção, de que se antecipam algumas propostas de ação:

  • Dar publicidade às agendas dos membros do governo, dos presidentes de câmara e dos presidentes das comissões parlamentares, com indicação dos nomes das pessoas / entidades envolvidas e dos temas tratados e decididos, permitindo acompanhar os processos legislativos e decisórios dos responsáveis políticos e administrativos;
  • Promover a interoperabilidade de dados do Portal Transparência, com o Portal BASE das compras públicas (revisto e melhorado) e do RCBE – Registo Central de Beneficiários Efetivos (revisto e melhorado), com mecanismos intuitivos de pesquisa e cruzamento de dados, de forma acessível e transparente para a sociedade;
  • Usar ferramentas de Business Intelligence e e-Discovery, para análise de grandes conjuntos de dados, para identificar padrões e anomalias que poderão indicar indícios de corrupção e de outros crimes, nomeadamente transações financeiras, contratos e outros registos, facilitando a deteção precoce de comportamentos suspeitos;
  • Acelerar e desintermediar os processos administrativos, através da adoção do paradigma do “Licenciamento Zero” nos processos decisórios, com regras claras e transparentes e sem necessidade de mediação humana, assim como implementação de sistemas de gestão documental e workflow totalmente escrutináveis e sem possibilidade de manipulação de datas para favorecer interesses particulares;
  • Promover a cidadania ativa, na forma de crowd auditing, como uma verdadeira vigilância colaborativa, pois, ao invés de depender unicamente de órgãos reguladores, a sociedade civil, ao utilizar as suas competências e conhecimentos diversos, pode e deve contribuir para a supervisão da administração pública, especialmente no que diz respeito à gestão de dados abertos e pessoais. É de lamentar que Portugal tenha ficado em penúltimo lugar, no que se refere ao ativismo cívico, entre os 41 países avaliados pela OCDE em 2020;
  • Sublinha-se a importância do fortalecimento de mecanismos digitais de denúncia e de proteção aos denunciantes, de forma autenticada e com garantia de privacidade;
  • O controle digital da fuga de capitais resultantes de corrupção exige a integração de várias medidas legais e tecnológicas à escala internacional, nomeadamente utilizando software específico para a prevenção de lavagem de dinheiro que monitoram transações em tempo real, como o AML (Anti-Money Laundering) e o padrão internacional CRS (Common Reporting Standard) para a troca automática de informações financeiras entre países.

Opinião de Luís Vidigal – Representante da sociedade civil na Rede Nacional de Administração Aberta, consultor internacional de e-Government, ativista cívico e ex-dirigente de topo em áreas tecnológicas e de modernização administrativa

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