Marcelo Beraba, jornalista que teve papel de destaque nas redações dos quatro jornais mais importantes do Brasil e foi cofundador e primeiro presidente da Associação Brasileira de Jornalismo de Investigação (Abraji), morreu na última segunda-feira, aos 74 anos, no Rio de janeiro, vítima de um cancro.

Dezenas de sites de notícias e inúmeros jornalistas do Brasil e da América Latina publicaram homenagens a Beraba. Os obituários coincidiram em elogiar um professor incansável, generoso, rigoroso e visionário da profissão, cujas atitudes profissionais marcaram a vida e a obra de inúmeros colegas e cuja atuação como professor influenciou decisivamente milhares de jornalistas.

Antes de se dedicar ao jornalismo, Beraba, filho de um empresário e de uma dona de casa, queria ser padre, segundo uma biografia publicada pela Abraji. Depois de estudar no Colégio Santo Inácio, tradicional colégio jesuíta do Rio de janeiro, ingressou no seminário de Vila Velha, no estado do Espírito Santo. Dedicou-se ao seminário durante quatro anos, onde obteve uma formação literária clássica e praticou a escrita.

Após abandonar a vida eclesiástica, Beraba regressou ao Rio no final de 1970, durante o período de maior repressão da ditadura militar, e fez a admissão a Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Rio de janeiro (ECO/UFRJ). O curso tinha sido inaugurado três anos antes e era apenas o segundo de Comunicação Social no Brasil. Beraba conquistou o primeiro lugar no processo de admissão.

Beraba recordaria a ECO, uma instituição fundada por filósofos e sociólogos com uma abordagem transdisciplinar, como um espaço de efervescência política e pouca formação prática. “Não tínhamos muita aula de jornalismo. Era mais sobre atividade política, debate”, disse o jornalista em entrevista à Memória Globo. Alguns professores, em suas palavras, “eram libertários que ensinavam Hegel, Heidegger, Foucault, Althusser e poesia”.

A aprendizagem foi obtida com a prática. No início de 1971, antes mesmo do início das aulas, Beraba começou a trabalhar como assistente editorial na Globo, na seção Cidade. Sua primeira tarefa foi simples: acompanhou um repórter numa reportagem sobre as cercas instaladas na Avenida Rio Branco para reduzir o número de acidentes com pedestres. Na Globo, Beraba desenvolveu interesse pela segurança pública, tema que o acompanharia por décadas.

O exclusivo mais notável durante seus 13 anos na Globo ocorreu em 1981, de acordo com o obituário da Globo. Beraba obteve uma fotografia do capitão Wilson Dias Machado no hospital. A imagem do soldado, gravemente ferido ao tentar plantar uma bomba para incriminar injustamente ativistas de esquerda, foi decisiva para impedir o sucesso da farsa planejada pelo regime ditatorial e serviu de motivação para a campanha de redemocratização, as Diretas Já.

Também na Globo, outra faceta de Beraba ficou evidente: sua capacidade de mobilizar coletivamente os trabalhadores. Marcelo Pontes, jornalista que conheceu Beraba em 1973 e se tornou seu amigo de toda a vida, disse à Abraji que, naquela época, Beraba era “um ativista sindical que fazia discursos nas mesas da redação”.

Um projeto profissional

Em 1984, Beraba ingressou na Folha de S. Paulo, jornal onde trabalhou por mais tempo, em dois períodos. Nesse mesmo ano, o jornal lançou, sob a liderança de Otavio Frias Filho, o Projeto Folha, um marco na modernização editorial do jornalismo brasileiro. Inspirado em modelos de imprensa independente dos Estados Unidos e da Europa, o projeto buscou transformar a Folha em um jornal pluralista, crítico e exigente.

Entre as principais mudanças estão a valorização do jornalismo investigativo, o investimento em formação, a adoção de um manual editorial e a abertura a vozes diversas. A Folha era um dos jornais mais influentes do Brasil, e Matinas Suzuki Jr., que foi editor-executivo durante anos, era uma figura central. Foi ele quem convidou Beraba.

Suzuki disse à Abraji que Beraba “era um ‘chef’ que dava consistência à cozinha jornalística da Folha. Ensinou o jornal a estruturar e planejar grandes coberturas e treinou uma geração de repórteres na imprensa paulista. Estabelecendo agendas, orientando-me e lembrando-me das perguntas que deveriam ser feitas numa cobertura, valeu a pena toda uma escola de jornalismo.”

Em 1985, Beraba assumiu a gestão do escritório do Rio. Sob sua liderança, a equipe produziu histórias de impacto nacional, como a revelação de testes nucleares sigilosos realizados pelo Ministério da Aeronáutica na Serra do Cachimbo, na Amazônia. A investigação foi conduzida por Elvira Lobato, então repórter do escritório e futura companheira de vida de Beraba.

“Ele era meu chefe quando recebi a informação fora do registro. Ele me disse: ‘Se você puder provar isso, será a sua consagração’, e me pediu para desaparecer da redação para investigar”, disse à Abraji Lobato, hoje reconhecida como uma das melhores repórteres do Brasil. A história ganhou as manchetes por semanas e se tornou parte da história do jornalismo investigativo brasileiro.

Em 1988, Beraba mudou-se para São Paulo. Primeiro, dirigiu a secção Cidades. Assumiu a seção de Política durante as eleições presidenciais de 1989, as primeiras desde o fim da ditadura militar. Nenhum jornalista da redação havia coberto uma eleição desse calibre.

“Estamos sozinhos. O país não tinha experiência, os candidatos não tinham experiência”, disse Beraba, segundo a Abraji.

Sob sua supervisão, a Folha foi o único veículo de comunicação que revelou os primeiros indícios de corrupção envolvendo o futuro presidente Fernando Collor. Em 1992, Collor foi demitido por corrupção. Beraba também adotou o modelo “tick reporter”, em que os jornalistas tentavam acompanhar cada movimento dos candidatos.

Beraba ascendeu ao cargo de editor-chefe, um dos mais altos do jornal. Em 1996, deixou a Folha para assumir a direção executiva do Jornal do Brasil, substituindo Rosental Calmon Alves, que deixou o cargo para ocupar a cátedra John S. e James L. Knight na Universidade do Texas em Austin.

O canto do cisne de O jb

Esse seria o último período de grande prestígio para o JB, que já passava por dificuldades financeiras, mas ainda contava com colunistas respeitados como Luis Fernando Veríssimo e Zuenir Ventura, posteriormente contratados pela Globo, e reconhecido como o jornal da intelectualidade carioca.

A troca inicialmente gerou desconfiança entre alguns na redação, acostumados a um estilo de liderança diferente. “Tínhamos uma certa desconfiança, porque o jornal já passava por dificuldades financeiras, e ele veio com a cultura da Folha, que era muito exigente. Mas logo ficou claro que ele era apaixonado por jornalismo”, disse Marcelo Moreira, então um jovem repórter da seção Cidades, à LatAm Journalism Review (LJR).

Foi Beraba quem ofereceu a Moreira a primeira missão importante de sua carreira: uma investigação sobre o cartel de ônibus do Rio de janeiro, um assunto espinhoso e pouco explorado. Segundo o seu autor, o relatório, finalista do prestigiado Prémio Esso, demorou seis meses a ser concluído e teve um impacto profundo.

“Em 30 anos de trabalho profissional, foi talvez o relatório mais completo que fiz. E isso só aconteceu porque Beraba acreditava no jornalismo”, disse Moreira.

Em 1999, Beraba atuou brevemente como editor-executivo do Jornal da Globo, sua única passagem pela televisão. Voltou a comandar o gabinete da Folha no Rio de janeiro no mesmo ano, para seu segundo mandato de nove anos. A partir de 2000, o jornal passou a ser dirigido pela editora-executiva Eleonora de Lucena, que a maioria da redação considerava alguém que concedia à sua equipe considerável liberdade editorial.

Os jornalistas que trabalharam com Beraba durante este período recordam o seu antigo chefe como exemplo.

“Ela sempre foi uma pessoa muito calma, rigorosa e justa. Ele não tratava as pessoas com base em amizades pessoais, mas oferecia um tratamento muito igualitário. Ele sabia o que cada um fazia de melhor e procurava aproveitá-lo”, disse à LJR Cláudia Antunes, que foi coordenadora de ramo sob a direção de Beraba.

Plínio Fraga, coordenador do escritório e repórter especial, resume sua experiência com Beraba em uma anedota. No início dos conselhos editoriais, Fraga comentou que Beraba sempre perguntava aos jornalistas se eles planejavam noticiar alguma notícia ou se “aceitariam que nada estava acontecendo”. A provocação era uma incitação ao trabalho, mesmo aos sábados, domingos e feriados.

“É uma lição de inquietação essencial. Não podemos aceitar que nada aconteça; Essa ideia é um erro. Precisamos estar preparados para as notícias e devemos persegui-las”, disse Fraga à LJR.

Uma associação fora das redações

Em junho de 2002, o brutal assassinato do repórter Tim Lopes, da TV Globo, teve um efeito mobilizador sobre os jornalistas brasileiros. Desde o desaparecimento de Lopes, antes de sua morte ser confirmada, Beraba teve um papel de destaque, primeiro organizando reuniões no Sindicato dos Jornalistas do Rio de janeiro e depois manifestações.

Dias depois de seminário sobre jornalismo investigativo realizado no Rio em resposta ao crime, Beraba enviou um e-mail a 44 jornalistas e editores convidando-os a fundar uma nova associação. “Durante o seminário, vários de nós nos perguntamos mais uma vez por que ainda não temos uma instituição independente no Brasil, formada e mantida por jornalistas, focada na troca de informações entre nós, na formação profissional e no aprofundamento do conhecimento […] focado principalmente no desenvolvimento profissional dos jornalistas, o que significa respeito pela sociedade que exige de nós um jornalismo de qualidade.”

Em dezembro daquele ano, cerca de 140 jornalistas reuniram se no auditório da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e fundaram oficialmente a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Beraba foi eleito o primeiro presidente da organização, cargo que ocupou até 2007.

Segundo Rosental Calmon Alves, diretor do Centro Knight de Jornalismo nas Américas, organização que deu apoio crucial para a criação da Abraji, Beraba foi indispensável para a associação.

“Sem Beraba, não haveria Abraji”, disse Alves. “Líderes como ele são escassos na criação, desenvolvimento e consolidação de associações de jornalistas. O seu estilo de liderança baseia-se sobretudo no diálogo sincero, na transparência, na escuta paciente e na capacidade de encontrar um terreno comum e chegar a acordos no meio de desacordos.”

O desenvolvimento profissional através de cursos e workshops foi a principal prioridade da missão inicial da Abraji. Logo, a defesa da liberdade de imprensa e do direito de acesso à informação pública passou a fazer parte de sua missão, lembrou Marcelo Moreira, que participou da criação da organização e foi seu presidente em 2012 e 2013.

“O foco da associação era a formação dos jornalistas, algo que lhes desse mais ferramentas para aprenderem a fazer um melhor trabalho investigativo”, disse Moreira. “O sindicato defende a profissão nas questões trabalhistas; A missão da Abraji não é assumir esse tipo de papel.”

A associação cresceu rapidamente e tornou-se uma referência na formação de jornalistas, na promoção de conferências e no combate às ameaças à imprensa. Em julho, realizou seu 20º Congresso em São Paulo. Beraba foi um dos homenageados no encontro.

A atual presidente da Abraji, Kátia Brembatti, diz que tem mantido o jornalista como referência fundamental para seus conselhos consultivos.

“Numa organização como a Abraji, há muitas situações diplomáticas e administrativas complexas, e ele sempre soube interpretar a situação com clareza. Ele antecipou os problemas e viu os riscos”, disse.

O que mais o impressionou, segundo Brembatti, foi sua humildade e sua constante vontade de aprender. “Aprendi com ele e ele aprendeu comigo”, concluí.

Quatro de Ases

Em 2008, aceitou o convite do então editor do Estadão, Ricardo Gandour, e deixou a Folha para assumir o cargo de editor-executivo de seu principal concorrente. Com isso, completou o mandato de quatro anos dos editores dos principais jornais brasileiros nos últimos 75 anos.

Utilizando o mesmo método que aplicava desde a época na Folha, Beraba dedicou-se no Estadão a estruturar rigorosamente a cobertura eleitoral, fortalecendo informações baseadas em dados e planejamento de longo prazo. Ele era conhecido por insistir numa preparação minuciosa, muitas vezes feita com meses de antecedência.

À frente do escritório de Brasília nos últimos anos da redação, Beraba continuou a exercer sua influência com discrição e firmeza. Como lembrou o jornalista investigativo Breno Pires, Beraba coordenou uma das mais significativas reportagens de jornalismo político da última década: a revelação dos acordos de delação premiada da Odebrecht, conhecida como a “desgraça apocalíptica”.

“No mesmo dia em que cheguei com o material exclusivo, graças a um esforço coordenado da Beraba, conseguimos publicar uma série de reportagens no site do Estadão que deixaram o Brasil sem fôlego”, disse Breno à LJR.

Deixou a redação em 2019. Em março deste ano, ele foi diagnosticado com um tumor cerebral. Segundo o obituário do Estadão, ele se manteve calmo até o fim e dedicou seus últimos meses à leitura incessante.

Beraba deixa viúva, Elvira Lobato, duas filhas, Ana Luíza e Cecília, dois enteados, João e Olívia, e três netos.

Na comunidade jornalística, as homenagens continuam a chegar. A Abraji está coletando depoimentos de brasileiros e latino-americanos, já que Beraba também teve um papel importante em nível regional, sendo um dos fundadores da Conferência Latino-Americana de Jornalismo Investigativo (Colpin).

Muitas das homenagens destacam que Beraba usou o termo “Maestro” para se referir aos seus colegas de profissão. O professor, Marcelo Beraba, segundo esses elogios, era na verdade ele.

Uma lembrança de João Palmeiro com Andre Duchiade / LatAm Journalism review

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