Muito desconhecido em Portugal e ainda mais em Espanha, Vicente Lusitano é hoje tido como o primeiro negro a compor partituras musicais de canto polifónico.

Os recentes protestos contra o racismo nos Estados Unidos da América vieram, de modo inesperado, recordar ao mundo esse oliventino que na Itália do século XVI, e entre os melhores compositores europeus do seu tempo, compôs e publicou obra musical de relevo. A nossa desatenção sobre esta figura é tal que poucos deram atenção ao facto de, ainda em junho deste ano, a obra de Vicente Lusitano ter sido interpretada em Bristol e Oxford (Inglaterra) sob a direção do maestro Joseph McHardy, e com honras de notícia no prestigiado The Guardian (artigo de 16 de junho de 2022, com o título “Vicente Lusitano: Why was tne first Black published composer just a footnote in histories?”). Por sua vez, Holly Williams da BBC Culture, escrevendo sobre o músico português no passado mês de agosto de 2022, e em língua castelhana (“La excepcional vida de Vicente Lusitano, el compositor negro que desafió las reglas en el Renacimiento y triunfó”), não teve em conta a sua naturalidade oliventina.

Ainda assim, Vicente Lusitano não é personagem completamente estranha à historiografia musical portuguesa. Diogo Barbosa Machado na sua Biblioteca Lusitana (1752) faz um primeiro resumo da vida do músico, dando-o, aliás, como natural de Olivença e “pardo”, expressão antiga com o significado de mestiço (no caso, provavelmente, filho de pai branco e mãe negra). Além de Joaquim de Vasconcelos (em Os Musicos Portuguezes, 1870), têm dado ao assunto particular destaque nas últimas décadas o musicólogo Robert Stevenson (1962) e Maria Augusta Barbosa (1977). Citando o investigador musical Luís Henriques (“Acerca do Motete Heu Me Domine de Vicente Lusitano”, 2018), “Lusitano foi autor de um livro de motetes, o Liber primeus epigramatum, impresso em Roma no ano de 1551, e de um tratado intitulado Introdutione facilissima, et novissima, di canto fermo, figurato, contraponto semplice et in concerto, impresso pela primeira vez em Roma em 1553, com reimpressão em Veneza nos anos de 1559 e 1551. Estas edições (especialmente a segunda) asseguram que o seu nome não fosse esquecido na História da Música Ocidental. É ainda atribuída a sua autoria a um Tratado de canto de organo, que sobrevive num manuscrito conservado na Biblioteca Nacional de França (F-Pn esp. 219)”.

Da formação musical de Vicente Lusitano desconhece-se tudo. A própria naturalidade oliventina nunca foi confirmada documentalmente, embora seja de aceitar a informação, normalmente muito rigorosa, de Diogo Barbosa Machado (1682-1772). É muito provável, no entanto, que o jovem músico tivesse a sua primeira iniciação em Évora, na Escola Polifónica da Sé de Évora, a mais importante do país, e onde pontuava o célebre professor e teórico musical espanhol Mateus de Aranda. Em Roma, sabe-se com mais certeza documental, que Vicente Lusitano teve como protetor o embaixador português na Santa Sé (entre 1551-57) D. Afonso de Lencastre, a cujo filho (Dinis de Lencastre) dedica, como propõe Robert Stevenson – certamente por deferência ao facto de Dinis ter sido discípulo do músico –, o motete Quid montes Musae colitis.

Convertido ao Protestantismo por volta de 1561, depois de acesa polémica com o compositor italiano Nicola Vicentino (1511-1575/6), Vicente Lusitano, com o apoio do ex-bispo Pietro Paolo Vergerio, obteve a proteção do Duque de Württemberg, perdendo-se na cidade de Estugarda o rasto da sua biografia. Para sua memória insigne fica-nos fundamentalmente o Liber Primus Epigramatum, obra musical dedicada a Dinis de Lencastre e que contempla vinte e dois motetes para cinco, seis e oito vozes.

Perante isto e em boa hora, Luis Alfonso Limpo Pirez, diretor do Arquivo Histórico Municipal de Olivença, acaba de solicitar à Universidade Lusíada a necessária colaboração na edição em língua portuguesa da tese doutoral de Maria Augusta Alves Barbosa sobre Vicente Lusitano, disponível apenas em alemão (1977). No repto lançado pelo diretor do AHMO também se exorta à constituição de um grupo multidisciplinar luso-espanhol com vista a aprofundar a vida e obra do insigne músico oliventino. Eis aqui a melhor prova de quanto vale (e de quanto pode) o nosso património cultural comum.

Autor: Francisco Bilou – Historiador de Arte

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