Estão a deixar de crescer ‘aos molhos’ nos campos do Alentejo
A opinião é unânime entre antigos guarda-rios e atuais pastores, sapadores florestais, guias de percursos pedestres, guardas florestais, escuteiros e amantes da caça e da pesca: serão poucos os caminhos que levam a lugares, onde no passado existiam ‘molhos’ de ervas silvestres comestíveis. Hoje, estes conhecedores da Natureza, dizem que é preciso palmilhar quilómetros para encontrar estas ervas, onde só alguns (os mais velhos) sabem o sítio, a época e como as recolher e acondicionar, para que não percam viçosidade, pois disso também passou a fazer-se negócio.
Para os leigos na arte de cozinhar, estas ‘verduras’ não passavam disso mesmo, mas a sabedoria do povo alentejano tornou possível o seu aproveitamento, para consumo próprio, utilizando-as para temperar os pratos de cozinha tradicional – um segredo repassado no tempo em que os avós diziam: “com quatro pontas de poejo e três dentes de alho se faz uma açorda“; hoje os chef’s não as dispensam no que confecionam em alta cozinha. Há atividades organizadas de cariz lúdico e até passeios pedestres elucidativos, onde quem sabe, ensina os interessados a conhecer/escolher e aprender, como colher esta ou aquela variedade, para futuro consumo. O certo é que também, muito do hábito de ir colher aos campos ramos de ervas aromáticas, plantas silvestres e outros produtos, em flor ou não, para uso alimentar está a cair em desuso, dada a escassez de algumas espécies; com tendência para se perder outro dos costumes da ‘terra’ que contribui(u) para uma das enormes riquezas da gastronomia alentejana. Há quem diga que a culpa é da industrialização e até do(s) tempo(s), que já não são de fartura, nem de feição.
À custa destas ervas aromáticas e afins, o povo alentejano enriqueceu os seus pratos, que faziam parte integrante de uma cozinha muito pobre em elementos nutritivos, sobretudo os proteicos – onde apenas o pão, a água e o sal eram ‘reis’ – mas que através da utilização destes temperos e não só se atribuiu um sabor muito peculiar na elaboração das refeições. Outrora paupérrima, a cozinha tradicional alentejana transfigurou-se, hoje é muito apreciada e dispensa apresentações.
Ele é com agriões, poejo, hortelã da ribeira, anis ou erva-doce, salva, louro, alecrim, rosmaninho, alfazema, espargos bravos, beldroegas, cardos, cunetas, pimpalhos, alabaças, arrabaças, saramagos, correois, murta e acelgas, cilarcas, túberas, cebolego e tantas outras, que aqui se poderia enumerar, bem como mais flores e caules, muitas destas frescas ou secas (tal a sua variedade), que desde cedo ficaram ligados(as) à forma de alimentação do habitantes da região Alentejo e que serviam tão só para atenuar a falta de condimentos, fazendo com que se desse origem à sensação de «barriga cheia».
– E que terra é esta (Alentejo), a que também já deram alcunha de ter ‘grandes barrigas’?
Alcunha de sentido figurativo ou não, o certo é que há registos escritos e inúmeros trabalhos de estudo, investigação e divulgação sobre a utilização destas substâncias condimentares e ervas de aroma, chegando até os entendidos a afirmar, que na história do Alentejo cabe desde sempre “o uso e abuso” destes elementos naturais e comestíveis.
Caracterizada como “uma comida de cheiros, de equilíbrio entre condimentos, apuros e muitos sabores. As ervas aromáticas personalizam e engrandecem os comeres…” e tantos que eles são, aromatizados por estes elementos básicos, que dão um toque especial e um sabor inconfundível.
Não há como resistir às únicas sopas de pão, seja ela em forma de açorda ou de sopa de tomate, assim como aos caldos de um peixe (de mar ou rio), de aves e de carne (de caça ou não); às sopas de acelgas, de espargos ou beldroegas e às de grão ou de feijão; e no tempo quente, ao gaspacho (tão alentejano), às saladas de tomate, de pepino e de pimentos; à frescura do feijão frade com atum e do grão com bacalhau; e ainda, depois Primavera fora, às favas guisadas ou em salada; às migas de vária ordem e aos ensopados de borrego ou de cabrito; aos refogados, estufados e assados, grelhados e cozidos e, para abrir a entrada destas refeições, até ao tempero das azeitonas, da região.
Para a confeção de tudo isto e, sem limites, as mãos hábeis destas gentes locais, deram-nos o uso destes ‘cheiros’ para finalizar ou refinar, bem como para dar gosto e nome de licores, para conservar queijos (de cabra ou de ovelha), para usar em bolos e outras guloseimas e para aromatizar doces. Mas, ainda há a ‘queima’ destas ervas, na realização de infusões, chá e tisanas (supostamente para fins medicinais) e, mesmo para perfumar vestuário e espaços, chegando a ser atribuídas ervas específicas com propriedades repelentes de insetos.
“Tudo o que é bom… não dura para sempre!” – diz a boca do povo e, com razão.
Sucede que serão várias as causas para perca de fartura desta flora nos campos da região, estando as principais relacionadas com as condições climatéricas, que estão na origem de períodos de seca cíclicos e prolongados; incêndios, mas também com o drástico aumento da poluição atmosférica; e agora a recente prática, do uso de herbicidas e pesticidas, contaminando cursos de água e lençóis freáticos abusivamente – e, daí o consequente empobrecimento dos nutrientes do solo, outrora rico.
Atualmente, já replantadas e em explorações de produção massiva, encontram-se algumas destas espécies de ervas que florescem agora como que de uma nova vertente de vida elas surgissem e tirando-lhes novo aproveitamento, após colhidas, embaladas e caindo nas cadeias de mercado, para serem vendidas ao público.
Porém, num campo mais pessoal, também é vê-las (às ervas) surgir nas tão usuais hortas caseiras ou urbanas (agora em voga), onde satisfazem necessidades e cumprem na função e fim para que foram (re)plantadas.
Da espontaneidade da planta, bravura e propriedades da mesma, retirar-se-à o quanto baste – sendo isso suficiente para os seus proprietários. Os produtos obtidos nestes campos ou nas hortas são uma mais-valia para quem os recolhe, pois ajudam também ‘a aliviar o peso na carteira’, na hora de os comprar, ainda que se trate de um baixo custo (às vezes) a pagar por estes bens, que poderão ser considerados também de primeira e única necessidade, para a alimentação da população.
Já só nas aldeias, montes e pequenos lugares aparece a população a recolher nos campos do Alentejo os ‘raminhos’ destes produtos silvestres, que são os da época, para depois secar e usar anualmente ou para consumir no imediato, aproveitando as máximas propriedades da erva. Assim, ela (re)nasça, cresça, floresça ou dê fruto – o que já é difícil, a avaliar pelas condições atrás descritas.
Valha-nos, ao menos, que no Cancioneiro Popular Português permaneça eternamente a referência a tão afamadas ervas, como por exemplo nas músicas: “Alecrim, alecrim aos molhos; Por causa de ti; Choram os meus olhos”; ou a reiteradamente repetida, passe-se a redundância: “Coentros e alho; E água a ferver. Dá pouco trabalho; e é fácil fazer.”
Bom apetite e, que se continue a cantar, após comer o bem temperado (e beber – já agora) – reunidos à volta de uma mesa (enquanto for possível), porque “a barriga não tem culpa dos maus ‘negócios’” e “tristezas não pagam dívidas”.
Leia também na íntegra na edição impressa do diário do SUL (27/10/20222)
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