“Do gume do canivete mágico de António e da ponta do pincel artista do irmão José, hoje surgem peças em miniatura de arte manual e de fiel reprodução”, quem o diz é Jacinto, o irmão mais novo da família Godinho. A cópia da carroça que todos usavam, conduzida por um macho que também era da “casa”, foi a primeira das obras de arte que surgiu das mãos de António. Completos que estavam os 62 anos e à beira da reforma. Apenas tendo como auxiliar a memória, que lhe não falta, António surpreendeu familiares com algo de nostálgico e emotivo. A seguir à carroça, não mais parou de re-produzir lembranças de uma vida de trabalho, neste seu Alentejo interior.
José Godinho e António Godinho junto das suas criações
António Godinho (à direita na foto) tem hoje 70 anos feitos e é natural e residente em S. Manços, mas desde tenra idade começou a trabalhar nos campos da região. Aos 5 anos já pisava o chão das hortas, ajudando no que era preciso e, aos 11 anos completos, mesmo a seguir à antiga Escola Primária, o destino levou-o a estabelecer arraiais na única ocupação que era a de muitos jovens habitantes deste Alentejo profundo – o trabalho no campo – António, estava por sua conta e, a tempo inteiro.
Aprendeu todo o tipo de tratos da terra e das culturas, no tempo em que para o trabalho na agricultura se usava a força extrema dos homens e a preciosa ajuda das bestas, que eram poucas face à necessidade. Do quotidiano destas lides faziam parte várias alfaias: o escarificador, o arado, a charrua, a grade, a gadanha, a foice e, demais equipamentos tantas eram as searas de trigo, milho e aveia que abundavam por estas terras. Depois da planta deitada ao solo, sendo este promissor e a estação do ano de feição, vinha a recolha do seu ‘fruto’ feito, aí o mesmo voltava à eira para ser devidamente acondicionado, como era o caso das favas ou grão, em que o malho, o ancinho, o rodo, a peneira e a vassoura eram as ferramentas fundamentais para a debulha das plantas leguminosas – a mecanização do setor era ainda uma miragem, neste Alentejo de há data.
António Godinho, guarda memórias bem presentes desses tempos e do uso desses utensílios manuais da lavoura, tantas foram as horas agarrado a cada um deles, saindo pela madrugada e regressando já o sol se tinha escondido. As marcas desses duros tempos estão-lhe estampadas na carne e na alma, mas ainda assim relembra a sua mocidade com saudade, ao ponto de enquanto uma conversa e outra puxar da navalha, que carrega sempre consigo e, começar a esculpir a próxima peça, isto ‘enquanto o Diabo esfrega um olho’.
Escusado será dizer que desse uso, ‘Ti Godinho’, carinhosamente tratado, hoje tira outro partido – ficou tudo registado na sua memória, incomparavelmente de parecença fotográfica. Mesmo por isso, pouco a pouco, o seu leque de miniaturas reproduzidas pacientemente foi crescendo e das alfaias passou à feitura de réplicas em ponto pequeno dessa maquinaria, que lhe despertava interesse e, com a qual começavam novas jornadas de trabalho.
Mas o que mais impressiona nestes trabalhos que brotam das mãos de António é o facto de nenhum deles ser executado após plano definido, sem utilização de esquema ou escalas, apresentando a proporção perfeita e real. O que torna o autor num autêntico fazedor de milagres artesanais, no que toca à utilização do canivete, como ferramenta indispensável para o término das cópias memoráveis daquilo que pretende executar. Caso para dizer: é obra de mestre!
Mas o leque de exemplares produzidos é interminável e ‘Ti Godinho’ exibe com orgulho a sua joia deste mini-museu agrícola – a lendária debulhadora Foster, à altura, um dos ícones de maior notoriedade da época dourada desse Alentejo, outrora ainda apelidado como celeiro do País.
As ideias para início de conceção de uma qualquer mini-obra surgem-lhe do nada e, às vezes, basta puxar umas conversas do antigamente.
Deste conjunto de obras ora apresentadas e que replicou em ponto pequeno, António orgulha-se de ter trabalhado com as máquinas e alfaias originais, horas a fio, passando por cima dos seus assentos, a lavrar, a ceifar, a enfardar e até debaixo das mesmas a consertar avarias, sempre que o infortúnio batia à porta – às vezes lá falava mais alto a veia da lei do desenrasca – mas, “ficavam outra vez capaz de lide e prosseguia o trabalho até sol-pôr”.
Naturalmente tudo isto seria já de si um ‘bico de obra’ – passe-se a redundância – se o grande apoio de António não fosse o irmão José, exímio companheiro de largas e duradouras horas, a desfazer e a refazer estas peças no barracão que serve de oficina improvisada, onde não falta toda a restante ferramenta de auxílio ao ‘mágico’ canivete.
António Godinho e José Godinho exibem réplicas em miniatura das igrejas de Vendinha e S. Manços
É a José Godinho (à direita na foto) que cabe a tarefa de pintar todas as obras e, esse trabalho meticuloso é imprescindível, para que este já vasto conjunto de exemplares artesanais apresente o aspeto cuidado que nos ‘enche o olho’ e nos prende a atenção – nada aqui é artificial.
Da meninice, guarda também memórias, para feitura de mais alfaias aqui exibidas e que são relíquias para a autoria das cangas e mulins, que enfeitam todos os animais que puxam as carroças reproduzidas. Um regalo para a vista de quem observa e mais ainda para quem viveu e relembra tempos idos.
Nas palavras de Jacinto Godinho, o irmão mais novo da família, este entendido nas artes das letras, dos sons e das imagens tele visionadas, “esta não é apenas mais uma exposição de peças artesanais. É um pequeno museu, que conta parte da história do Alentejo agrícola e que, por isso, é a raiz da alma alentejana”.
Ressalte-se que António e José Godinho não fazem desta sua arte espontânea um modo de vida – “isto é apenas o nosso entretém, para passar tempo a ‘magicar’ elementos meramente decorativos, que quando chega a oportunidade gostamos de mostrar”.
O espólio de objetos permanece religiosamente guardado pelos seus autores.
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